PLUTARCO E
OS
“MISTÉRIOS DE ÍSIS E OSÍRIS”
(Por Rodrigo Peñaloza,
15-III-2016)
Escrevi há muito tempo um
resumo sobre os mistérios de Ísis e Osíris conforme a narração de Plutarco.
Julgo conveniente começar com uma citação que extraí da parte 1 da obra De
Iside et Osiride, de Plutarco: “Porquanto nada, para o homem, é mais
grandioso receber nem, para Deus, é mais augusto agraciar que a verdade”.
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AdicionaPlutarco
(depois de sua conversão em cidadão romano,
Lucius Mestrius Plutarchus) é o
nome de um filósofo e biógrafo grego,
nascido em 46 e falecido na mesma cidade
de Queroneia, (atual Kaprena,
região da Beócia) Grécia, em 119. Passou a maior
parte de sua vida
nesta mesma cidade, tendo estudado matemática e filosofia
a
responsabilidade de Ammonius, mais tarde vindo a ocupar
altos cargos públicos.r
legenda (InfoEscola)
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Sabe-se que o culto de Ísis
foi introduzido na Grécia antes de 330 a.C, o que é comprovado por inscrições
em Peiraeus. Assim, é natural que, na própria cidade em que Plutarco (50–120
d.C.) nasceu houvesse cultos egípcios e inscrições referentes a Serápis, Ísis e
Anúbis. O conjunto das obras morais de Plutarco, conhecido por Moralia, é
imenso e, com certeza, a mais popular é a que ficou conhecida com a versão
latina do título: De Iside et Osiride. Apesar da presença marcante da
religiosidade egípcia na Grécia, Plutarco não era agudamente versado em cultura
egípcia, mas certamente possuía um cabedal de conhecimentos razoavelmente
elevado quanto a esse tema, provavelmente em decorrência das fontes a que teve
acesso, principalmente Heródoto.
Abstraindo-nos, contudo, de
pequenos erros constantes na obra, ela é, mesmo assim, reconhecidamente
majestosa. Fato interessante é que a obra De Iside et Osiride é
dedicada a uma sacerdotisa de Delfos chamada Cléa, a quem Plutarco também
dedica uma outra obra de sua Moralia, aquela que fala da bravura das
mulheres. Só nos resta imaginar quão esplêndido há-de ter sido o caráter dessa
sacerdotisa.
Exporei aqui o mais
sucintamente possível o conteúdo da obra de Plutarco sobre os Mistérios de
Ísis e Osíris. Os sinais “§” indicam a seção da obra a que se faz referência.
A. Mistérios de Ísis e Osíris
Ísis e a busca da Verdade (§§ 1–7)
A felicidade, que consiste
no conhecimento da Verdade, é a mais augusta concessão divina. Plutarco o diz — e assim o reproduzimos na citação que
introduz este ensaio -, logo no começo da obra, dirigindo-se a Cléa: “porquanto
nada, para o homem, é mais grandioso receber nem, para Deus, é mais augusto
agraciar que a verdade”. Se o homem é imortal, a imortalidade só se justifica
pela possibilidade de se conhecer a Verdade. Assim, aspirar à Verdade é
aspirar, ao mesmo tempo, à Divindade. Conhecer a Verdade é ser sábio: e Ísis é
a deusa da Sabedoria. A sabedoria transcende a razão: ela requer o pensamento
filosófico mais profundo. Com efeito, conforme afirma Plutarco, o verdadeiro
isíaco recebe a tradição e submete-a à razão, aprofundando a Verdade pela
filosofia.
Deus fez o Homem imortal
com o objetivo de que conhecesse a Verdade e usufruísse da felicidade. Ísis é
um símbolo dessa busca. Quando Plutarco diz que o iniciado nos Mistérios de
Ísis deve submeter a tradição à razão e aprofundar a Verdade pela filosofia,
quer dizer que os ensinamentos transmitidos aos iniciados isíacos devem ser
objeto de reflexão racional, ou seja, de interpretação. O aprofundamento da
Verdade sugere uma ampliação gradativa do conhecimento ou das possibilidades
interpretativas. É uma afirmação, portanto, de que o conhecimento da Verdade,
nos Mistérios de Ísis, também se dá através de graus nos quais o iniciado se
aproxima cada vez mais da Verdade.
Os fundamentos dos mitos (§§ 8–11)
Os princípios que os
egípcios introduziram em suas cerimônias não são fundamentados em superstições.
Têm, ao contrário, fundamento em princípios morais, razões de utilidade,
lembranças históricas ou explicações deduzidas dos fenômenos naturais. Tanto é
assim que Plutarco adverte que, ao ouvirmos o que a mitologia egípcia relata,
não devemos tomar tudo literalmente, mas interpretar.
Plutarco esclarece que, nos
Mistérios de Ísis, os relatos mitológicos têm dois lados: o exotérico e o
esotérico. O exotérico decorre do relato tal como é; o esotérico decorre do
esforço interpretativo do iniciado.
Relato do mito de Ísis-Osíris-Tífon (§§
12–19)
Aqui começa o relato do
mito de Ísis, Osíris e Tífon, segundo a narrativa de Plutarco. Dado que devo
ser sucinto, omitirei muitos detalhes, mas, espero, sem afetar a coesão lógica
da história.
Réa, deusa do céu, teve
uniões secretas com Cronos, deus da terra. O Sol — ou, ainda, Rá, o olho diurno do rosto celeste -, tendo
descoberto, amaldiçoou Rá desejando que ela não pudesse dar à luz. Hermes, que
dela era enamorado, jogou dados com a Lua, arrebatando-lhe a septuagésima
segunda parte de seus dias de luz, formando, assim, cinco dias (com efeito, 360
¸ 72 = 5, de modo que, adicionando-se esses 5 aos 360, temos os 365 dias do ano
religioso). Nesses cinco dias adicionais, os egípcios celebravam o aniversário
dos deuses. No primeiro dia nasceu Osíris; no segundo, Aruéris; no terceiro,
Tífon; no quarto, Ísis e, no quinto, Néftis, que uns chamavam Teleuté e
Afrodite ou ainda Vitória. Tífon, porém, nasceu de uma forma abrupta, fora de
seu tempo e rasgando o flanco materno de um só golpe. Por essa razão, o
terceiro dia dos dias adicionais era considerado nefasto. Ísis e Osíris,
enamorados desde o ventre, uniram-se.
Osíris passou a reinar os
egípcios, tirando-os das privações e da ignorância, percorrendo toda a terra
para civilizá-la. Na sua ausência, Ísis mantinha estreita vigilância contra as
investidas de Tífon, por natureza, malévolo. Regressando Osíris, Tífon planejou
matá-lo. Inteirou-se das medidas do corpo de Osíris e construiu um ataúde com
as mesmas medidas, decorando-o maravilhosamente e apresentando-o em um festim.
Todos, no festim, ficaram arrebatados e Tífon prometeu presenteá-lo àquele que
nele coubesse perfeitamente. Obviamente, apenas Osíris coube no esquife. No
momento em Osíris lá estava, todos os convidados correram para fechar o ataúde,
aprisionando-o lá dentro. Em seguida, o caixão foi jogado ao rio e deixado
chegar até o mar pela boca Tanítica. Os Pãs e os Sátiros, que habitavam os
arredores de Chemnis, uma cidade do Alto Egito, mais tarde chamada Panópolis,
foram os primeiros a saber da tragédia, espalhando a notícia com espanto, a
população ficando subitamente atemorizada pelos fatos. Desde então esse temor
que tomou conta do povo passou a ser denominado pânico, em lembrança do dia de
terrores alardeados pelos Pãs.
Quando Ísis soube, cortou
uma mecha de seus cabelos, vestiu-se de luto e saiu vagando amargurada,
perguntando a todos que encontrava sobre o paradeiro do esquife. Umas crianças
que encontrou finalmente lhe indicaram o paradeiro. Ela também descobriu que
Osíris uniu-se com sua irmã Néftis, pensando ser Ísis, e que dessa união nasceu
uma criança chamada Anúbis. Encontrou a criança e alimentou-a, convertendo
Anúbis em seu guardião e acompanhante.
Em seguida, avisaram-lhe
que o esquife estacionara ao pé de uma tamareira, no território de Biblos. O
rei de lá mandara cortar o tronco em que estava o esquife invisível e fazer com
ele uma coluna para sustentar o teto de seu palácio. Ísis foi para lá,
permanecendo silente, pranteando somente. As damas da rainha acolheram-na, pois
Ísis se oferecera para entrançar-lhes os cabelos e impregná-las com o perfume
que seu próprio corpo exalava. A rainha, encantada com a estrangeira, mandou
chamá-la, fez dela sua amiga íntima e nomeou-a ama de leite de seu filho. Ísis,
em vez de dar-lhe o seio, punha o dedo na boca da criança, queimando o que
havia de mortal em seu corpo. Esse procedimento perdurou até que a rainha,
tendo descoberto que Ísis queimava-lhe o filho, privando-o do privilégio da
imortalidade, lançou agudos gritos. Foi só então que Ísis descobriu sua
qualidade de deusa. Pediu, assim, a coluna, desprendeu-a, cobriu-a e ungiu-a,
confiando-a aos cuidados do rei e da rainha. Ao encontrar o caixão, prostrou-se
sobre ele, soluçando tão agudamente que o filho mais jovem do rei ficou como
morto. Com a ajuda do filho maior do rei, ela o pôs em um navio e zarpou.
Conta Heródoto que, antes
de sair em busca do féretro, Ísis confiou seu filho Hórus, que tivera com
Osíris, a Outit, para protegê-lo das emboscadas de Tífon e guardá-lo até
terminar sua busca. Esse detalhe não aparece na obra de Plutarco, mas esclarece
o trecho seguinte da obra, §18, em que Plutarco diz que Ísis, antes de ir em
busca de seu filho Hórus, depositou o féretro de Osíris em um lugar afastado.
Tífon, porém, descobriu o esconderijo e cortou o corpo de Osíris em quatorze
pedaços, lançando-os ao vento. Ísis partiu novamente, agora em um barco de
papiro e em busca dos pedaços do corpo de Osíris. Encontrou-os todos, menos o
falo, pois, quando Tífon o atirou ao rio, comeram-no o lepidoto, o capatão e o
oxirrinco. São peixes e crustáceos da região. Para repor o membro, Ísis
construiu uma imitação, daí a celebração do falo pelos egípcios.
Quando Osíris voltou dos
infernos, treinou seu filho Hórus para o combate contra Tífon. O combate
terminou com a vitória de Hórus. Tífon, amarrado, foi entregue a Ísis, mas esta
o libertou. Hórus, indignado, arrancou-lhe da fronte o diadema real. Mas Hermes
substituiu o diadema por uma peça com a forma de cabeça de vaca e pôs sobre a
cabeça de Ísis.
Osíris, depois de morto,
uniu-se novamente a Ísis e dessa união nasceu Harpocratas, prematuro e de
pernas débeis. Para uns, Harpocratas é Hórus criança, o Sol nascente.
Para outros, é o Sol no
inverno.
As formas e o conteúdo dos mitos (§§ 20–31)
Plutarco rejeita a ideia de
que os mitos relatem fatos tais como realmente ocorreram. O mito é a imagem de
certa verdade que reflete um mesmo pensamento em diferentes ambientes, “como
nos dão a entender esses ritos impregnados de luto e tristeza aparente, essas
disposições arquitetônicas dos templos”. Plutarco ilustra essa generalidade com
mitos do Egito e da Assíria.
Plutarco também rejeita a
ideia de que os mitos apenas relembrem ações históricas de grandes homens ou
deuses. Considera mais razoável (junto com Platão, Pitágoras, Xenócrates e
Crisipo) a ideia de que os mitos relatem os reveses de “Gênios”. Gênios são homens
dotados de uma natureza espiritual superior. Ele diz que “Ísis e Osíris, que
foram bons Gênios, foram convertidos em deuses devido às suas virtudes, da
mesma maneira como o foram Hércules e Dioniso”. Plutarco aborda aqui, por
conseguinte, os fundamentos sócio-históricos dos mitos. Os mitos podem relatar
os reveses de homens espiritualmente superiores que viveram entre nós e cujas
vidas (ou o significado delas para os seus contemporâneos) foram retratadas,
simbolicamente, nos mitos. Esses homens espiritualmente superiores (os gênios)
foram elevados à categoria de deuses pelos próprios homens. Os ensinamentos
desses gênios foram transmitidos a todos, como se verifica pela diversidade dos
mitos em diferentes ambientes, em diferentes nações, mas refletem todos eles um
mesmo pensamento. Essa unidade de pensamento se manifesta na natureza lúgubre
dos mitos, ou seja, nos aspectos da morte, do sofrimento e do renascimento, e,
também, na arquitetura dos templos.
Para ele, portanto, os
diferentes mitos possuem um eixo comum.
A tríade Osíris-Ísis-Tífon (§§ 32–55)
Plutarco esboça
interpretações mais filosóficas da tríade Osíris-Ísis-Tífon. Começa mencionando
os que fazem a associação: Osíris = Nilo; Ísis = Terra; Tífon = mar. Segue
apresentando outras interpretações baseadas nos fatos naturais (estações da
seca, da chuva, fenômenos astronômicos, como eclipses etc.) até concluir que
Tífon simboliza tudo que é nocivo na natureza (§45).
Com o intuito de
interpretar a dualidade Osíris-Tífon, faz menção a uma doutrina muito antiga, a
de que dois princípios opostos (regularidade e irregularidade) estão mesclados
na Natureza. Faz, então, a associação (§52). Osíris é a Alma do mundo,
inteligência e razão. De Osíris emana toda regularidade, tudo que é constante e
saudável com relação às estações, temperatura, periodicidades etc. Tífon é tudo
aquilo que, na alma do mundo, há de apaixonado, subversivo, irracional e
impulsivo, tudo de perecível e nocivo no corpo do universo. Simboliza todas as
desordens causadas pelas irregularidades e intempéries das estações, eclipses
do Sol, ocultações da Lua. É a força opressora e constringente, é o transtorno,
o salto para trás.
Após associar Osíris e
Tífon ao princípio (hermético) da dualidade, interpreta Ísis como (§§53–55)
sendo a Natureza considerada como mulher apta para receber toda geração.
Em suma, Osíris simboliza o
princípio universal que torna o universo ordenado e regular. Ísis simboliza a
Natureza, enquanto matéria-prima que potencialmente pode receber qualquer forma
impressa pelo princípio ordenador. Tífon simboliza os desvios da regularidade,
seja por deficiência, seja por excesso.
A tríade Osíris-Ísis-Hórus (§§ 56–66)
A natureza mais perfeita e
divina compõe-se de três princípios: inteligência, matéria e mundo organizado
(cosmo, o produto da união dos dois primeiros princípios), tríade essa
simbolizada pelo triângulo retângulo de lados 3, 4 e 5, que Platão também
ilustra na República:
Osíris concede os
princípios. Ísis os recebe e distribui. Hórus é o mundo ordenado, resultado, ou
melhor, síntese do princípio ativo de Osíris e do passivio de Ísis. Tífon é a
perturbação pelo excesso ou pela deficiência.
Plutarco apenas reforça o
que foi comentado quanto aos §§32–55, mas acrescenta a interpretação de Hórus,
o filho de Osíris e Ísis. Hórus é o cosmo, o mundo ordenado e belo, fruto da
inteligência organizadora que atua sobre a matéria-prima do universo.
Unicidade do conteúdo simbólico dos ritos (§§
67–73)
Assim como o sol, a lua, o
firmamento, a terra e o mar são conhecidos por todos os povos, ainda que por
nomes diferentes, assim também essa razão única que regula o universo e as
potências que a ajudam são objeto de homenagens e denominações que variam com a
diversidade dos costumes. Esses diversos nomes e ritos servem de símbolos de
uma verdade só: o princípio ternário do universo.
Plutarco afirma que a forma
dos ritos varia, mas que seus significados simbólicos são universais e apontam
todos para a mesma verdade. Dentro do contexto cultural em que se insere, o dos
Mistérios de Ísis, Plutarco faz um belíssimo chamamento à tolerância religiosa
e cultural e à visão de que todos os homens compartilham do mesmo desejo pela
verdade.
Razões de utilidade (§§ 74–80)
Na parte final sua obra,
Plutarco afirma que certos símbolos referem-se a fenômenos úteis ao Homem, isto
é, que certos símbolos foram criados devido ao seu caráter educativo.
B. Conclusão
O que subjaz a obra de
Plutarco não é propriamente o mito de Ísis e Osíris e suas diversas
interpretações, mas um profundo sentimento de tolerância religiosa e cultural.
Ao apresentar os diversos níveis interpretativos do mito, Plutarco deixa claro
que, sob diversas formas, o mito é comum a todos os povos, pelo menos os
principais povos conhecidos da época, embora a substância seja a mesma. E,
principalmente, que em todos os casos, o que move a celebração do mito em cada
povo é a busca da Verdade. Ele retoma, assim, a abertura da obra, quando diz
que a busca da Verdade é o maior presente dos deuses aos homens e o melhor
presente que os homens podem receber. Dessa forma, Plutarco defende a ideia de
que todos os homens, não importando a cultura nem a religião, ainda que por
caminhos aparentemente diferentes, são irmãos em busca de uma mesma Verdade
Universal.
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